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UM RIO DE JANEIRO DE MUITOS RURAIS E RURALIDADES

texto de Emilia Jomalinis

O estado do Rio de Janeiro é conhecido por ser o mais urbanizado do país, com 96% de sua população em ambiente urbano, de acordo com o Censo 2010, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Isso significa que se trata da Unidade da Federação com maior percentual de sua população residindo em área urbana. É também o estado com maioria significativa da sua população residindo na região metropolitana: 74,0% do total da população residente no território fluminense. Decerto, muitos fatores nos explicam esta condição do estado, tais como a cidade do Rio de Janeiro ter cumprido função de capital do país entre 1763 e 1960, a vinda da família real portuguesa ainda durante o período colonial, que chegou a dobrar número de moradores na cidade e, por fim, o fato da atual capital e o interior do estado terem tido ao longo da história diversos estatutos jurídicos, nem sempre compondo a mesma unidade político-administrativa. 

Além destes elementos que fazem parte da geografia histórica do nosso estado, há outros fatores que nos ajudam a compreender as dinâmicas rurais fluminense: a intensa urbanização acompanhada da especulação imobiliária, a manutenção da concentração fundiária e a inexistência e/ou ineficácia de significativas políticas agrárias e alimentares consolidam este cenário de esvaziamento pelo qual passou o interior do estado e que levou a uma considerável dependência do interior em relação à sua capital. 

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Num estado cujo desenvolvimento mira majoritariamente os setores de petróleo e gás e o de serviços, os índices da atividade agrícola - produção, área ocupada e empregos - têm registrado queda sucessivamente. Os dados relativos à área colhida são categóricos em apresentar este quadro, visto que se registra redução em quase todas as lavouras entre 1985 e 2006. De acordo com a Pesquisa Agrícola Municipal, realizada pelo IBGE, componentes básicos da alimentação brasileira, como arroz e o feijão, também apresentam queda na produção, colocando inclusive a segunda maior região metropolitana do Brasil numa frágil condição em termos de soberania e segurança alimentar e nutricional. Dados recentes também indicam, lamentavelmente, a manutenção da concentração fundiária, fator que contribui para este quadro de esvaziamento e para o acirramento dos conflitos e da violência no campo. 

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A alta taxa de urbanização traz desafios para a permanência da agricultura, pois em diversos casos vem associada à lógica da especulação imobiliária. Por fim, o turismo também se constitui como um elemento importante de análise que, por um lado, pode ser interpretado como uma possibilidade de atividade complementar à renda de famílias rurais, à luz da ideia da pluriatividade da agricultura, mas ao mesmo tempo pode constituir-se como uma ameaça para populações tradicionais do campo por motivos diversos, dentre os quais a valorização de suas terras e a mercantilização desse espaço estritamente para fins turísticos. Em síntese, a agricultura fluminense aparece sufocada de um lado pela sua pouca visibilidade social e política e, de outro, pelo enorme peso que os demais setores e o processo de urbanização possuem. 

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Este desafio, que apresenta contornos próprios e bastante críticos para a realidade fluminense, não é “privilégio” nosso. Frente à tendência de crescimento das cidades e do processo de urbanização no mundo, ampla literatura acadêmica tem se esforçado para analisar a forma como estas transformações reverberam no espaço rural e no cotidiano de quem produz alimentos no campo. Porém, vale destacar que parte dessa literatura mostra as formas como o rural permanece e se reinventa, fazendo cair por terra o prognóstico anunciado desde a revolução urbano-industrial sobre seu fim. 

Pelo contrário, o que se apreende muitas vezes são manifestações de outras formas de rural emergindo, que nos provocam a suplantar uma ideia de contradição tácita e antagônica entre rural e urbano. Inclusive, se historicamente a noção de rural fora implícita ou explicitamente associada à ideia de atraso e à carência de serviços - visão esta que compromete a construção e condução de políticas para estas áreas – são diversos os casos nos quais espaços rurais têm atraído novos habitantes, frente aos dilemas da urbanização. 

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Surge, então, para além da ideia de um rural, a existência de uma ruralidade, que pode ser compreendida como uma forma de inserção do mundo rural no conjunto da sociedade, o que significa compreender sua relação com a cidade, cada qual com sua função, numa relação social de solidariedade. Ela diz respeito a uma forma de organização da vida social, levando em conta, especialmente, o acesso aos recursos naturais e aos bens e serviços da cidadania; a composição da sociedade rural em classes e categorias sociais e os valores culturais que sedimentam e particularizam os seus modos de vida. Outro elemento chave na construção desta categoria é compreender o espaço rural para além da atividade agrícola, englobando outras sociabilidades e dinâmicas produtivas. Entendo, assim, que a ruralidade envolve múltiplas identidades em construção. 

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Voltando ao nosso estado, frente a tantos desafios: afinal, qual o lugar do rural e do campo no espaço fluminense? Apesar de, do ponto da construção estratégica de políticas, este estado historicamente abrir mão de construir uma estratégia de desenvolvimento rural que coloque o direito à terra e ao território e a produção de alimentos num lugar de centralidade, a agricultura fluminense existe e resiste. Esta é a tônica que diversos atores sociais do rural fluminense e suas distintas formas de fazer agricultura têm anunciado e aos quais faço aqui coro. 

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Discorrer sobre a agricultura e o rural fluminense é um exercício de equilíbrio entre uma necessária crítica à fragilidade da ação pública estatal, no tocante às agendas da agricultura e da alimentação, ao mesmo tempo em que é imprescindível que se visibilize e se valorize as diversas práticas agrícolas e as formas sociais presentes no rural fluminense, composta por uma diversidade de sujeitos: quilombolas, indígenas, caiçaras, pescadores/as, camponeses/as, agricultores/as produtores rurais, dentre outros/as. 

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Especialmente na região serrana do estado, a agricultura ainda apresenta um papel importante. Ainda nos anos 1980, a agricultura era central como atividade econômica da região. Ao longo do século passado e ainda hoje, toda a região serrana do estado se consolidou como uma importante região produtora de alimentos, em especial para região metropolitana. É notável o fluxo de caminhões que sobem e descem as serras, levando alimentos in natura para a população carioca e da baixada fluminense. Nova Friburgo, por exemplo, tem como perfil agrícola dominante as pequenas lavouras de trabalho familiar. 

Trata-se de uma região de baixa mecanização em termos comparativos às grandes regiões do agronegócio brasileiro, produtoras de commodities agrícolas. Nova Friburgo é um dos maiores produtores de olerícolas, o maior produtor de couve-flor e o segundo maior produtor de flor de corte do país, constituindo-se também como um dos berços da agricultura orgânica e de experiências de agroecologia no estado do Rio. Segundo dados da Cooperativa de Trabalho, Consultoria, Projetos e Serviços em Sustentabilidade (CEDRO), que executa chamadas públicas de Assistência Técnica e Extensão Rural na região, um terço dos trabalhadores friburguenses está no campo, o que equivale a cerca de 20 mil pessoas. 

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Ao mesmo tempo em que a produção de alimentos permanece como importante atividade nesta região, ela também tem se tornado palco de crescentes iniciativas de turismo rural, como também se consolidou como espaço de destino de uma população constrangida pelos problemas das grandes cidades, expressando assim significativo fluxo de turismo, local de segunda e até mesmo primeira moradia. Este livro nos presenteia com histórias de vida de pessoas cujas trajetórias em sua maioria não se originam na região serrana do Rio e, muitas vezes, são atravessadas por experiências que transitam entre o rural e o urbano, as ruralidades e as urbanidades. Mudar para o campo e fazer dali sua morada, na contramão de um senso comum ainda existente que relaciona o rural ao atraso e ao tradicional em oposição ao moderno, em que pese a fragilidade desse binarismo, sobretudo como categoria explicativa da realidade brasileira, onde, como destacam pensadores como Chico de Oliveira e Milton Santos, não se pode pensar moderno e tradicional como opositores e, sim, como dois elementos que se emaranham entre si no cotidiano. 

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Enquanto parte significativa da agricultura tradicional da região foi alvo do suposto “moderno” produtivismo tecnológico, à base de uso intensivo de agrotóxicos que têm colocado especialmente a saúde dos trabalhadores e trabalhadoras do campo em situação de risco, destaco que estas histórias de vida são permeadas por uma relação com o ambiente e a natureza e por práticas agrícolas percebidas como mais ecológicas quando comparados ao modelo produtivo intensivo em agrotóxicos e pouco diverso em sua produção. No cotidiano desses sujeitos sociais, cujas narrativas e práticas contribuem na construção do rural agrícola, como também de um rural não agrícola, percebe-se a construção de práticas agroecológicas – que envolvam a valorização do saber tradicional em diálogo - e o aporte a partir de suas percepções sobre problemas ambientais e de saúde. Inclusive, estas formas sustentáveis de produção cumpriram papel importante na construção de experiências de agricultura orgânica na região, incluindo a criação da Associação de Agricultores Biológicos do Estado do Rio de Janeiro, a Abio, fundada no município de Nova Friburgo, entre 1984 e 1985. 

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Decerto, dessas experiências individuais, há uma questão sociológica a ser explorada. Quando analisado em conjunto, tem-se que esse fenômeno deixa de ser restrito à esfera individual. Tais formas de "ida ao campo" poderiam apontar para formas organizativas novas com características e limites a serem descobertos e definidos. Ainda que a oposição entre urbano e rural esteja embasada em uma simplificação, isso não quer dizer que não exista. De fato, há uma diferenciação notável em termos de morfologia social. Mais do que separar urbano e rural de maneira dicotômica, porém, nos cabe apreender para refletir e (re) pensar o rural (como também o urbano) em constante transformação, percebendo o rural com espaço de potência e novas sociabilidades que abrem um novo fértil caminho para ressignificações desses espaços e da relação existente ali entre sociedade e ambiente. Escrever sobre as histórias de vida que compõem o tecido social do rural fluminense é uma ferramenta importante na defesa desses territórios e da agricultura que ali existe. 

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Emilia Jomalinis*

*Mulher, feminista e militante pela agroecologia no estado do Rio de Janeiro. É mestra em Geografia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e Doutora em Ciência Sociais pelo Programa de Pós-Graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento Agricultura e Sociedade da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro.

Para mais textos sobre estas discussões:

 

ALENTEJANO, Paulo Roberto Raposo. Reforma agrária, território e desenvolvimento no Rio de Janeiro. Tese de Doutorado, CPDA/UFRRJ, Rio de Janeiro: 2003.

 

ALENTEJANO, Paulo Roberto Raposo. Um breve balanço da agricultura e da política agrária no estado do Rio de Janeiro nas últimas décadas, 2012.

 

BITOUN, Jan; MIRANDA, Lívia, SOARES, Fernando, LYRA, Mª Rejane; CAVALCANTI, Jeremias- Tipologia Regionalizada dos Espaços Rurais brasileiros. In Carlos Miranda (org.) Tipologia Regionalizada dos Espaços Rurais brasileiros: Implicações no Marco Político e nas Políticas Públicas. Brasília, IICA, 2017.

 

CARNEIRO, Maria José. Ruralidade: novas identidades em construção. Estudos Sociedade e Agricultura, no.11, out. 1998.

 

CARNEIRO, M.J. Rural como categoria de pensamento. Ruris. 02 (01), março 2008

 

FONSECA, M.F.A.C. A construção social do mercado de alimentos orgânicos: Estratégias dos diferentes autores da rede de produção e comercialização de frutas, legumes e verduras (FLV) in natura no estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: UFRRJ (CPDA), 2000. Dissertação de Mestrado.

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